Dia do beijo (atrasado)

coded by ctellier | tags: | Posted On sábado, 1 de maio de 2010 at 18:09

meteorologia: sábado de sol
pecado da gula: sanduiche de mortadela
teor alcoolico: 2 smirnoff ice
audio: nerdcast #207
video: magnum

"Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.

Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água."


Júlio Cortázar, in O Jogo da Amarelinha

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coded by ctellier | tags: | Posted On segunda-feira, 26 de abril de 2010 at 20:50

"Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos."

Clarice Lispector, in Para não esquecer

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21 grams

coded by ctellier | tags: | Posted On domingo, 25 de abril de 2010 at 20:12

meteorologia: calor... chuva à tarde
pecado da gula: batatas sautées
teor alcoolico: caipirinha, original, stella artois
audio: spin-off s03e16
video: high stakes poker

21 grams, direção Alejandro González Iñárritu

Deixei a tv ligada depois de assistir o High Stakes Poker, e não consegui sair dali a não ser durante os intervalos. 21 gramas é um daqueles filmes que eu não me canso de rever. A estrutura do filme é um ótimo exemplo de um estilo de narrativa usado (e abusado) ostensivamente nos últimos anos: estórias e personagens aparentemente desconectados e que em algum momento se entrecruzam. Iñarritu utiliza-se dessa técnica com perfeição. Nos momentos iniciais, somos apresentados aos personagens: Benício Del Toro, como Jack Jordan, um ex-presidiário regenerado e devotado à religião; Sean Penn, como Paul Rivers, um professor de matemática com uma doença cardíaca em fase terminal; e Naomi Watts, como Cristine Peck, uma ex-viciada que se reabilitou após constituir sua família.
Assim como em Amores Perros, um acidente automobilístico é o evento que une suas trajetórias. O enredo é simples, mas além da montagem do filme intercalar as três estórias, as cenas saltam para "momentos" diferentes da vida de cada personagem. Iñarritu passeia livremente entre presente, passado e futuro. Durante a primeira meia hora, isso obriga o espectador a redobrar a atenção, tentando localizar-se temporalmente. A montagem do quebra-cabeça vai se tornando cada vez mais fácil à medida que mais peças são apresentadas e encaixadas no time correto. E apesar de todo esse recorte, eu ainda não peguei nenhum furo no roteiro, nenhum fio solto.
Desde a primeira vez que assisti, 21 gramas me remeteu a dois outros filme com estrutura narrativa semelhante, devido aos saltos temporais: Memento e Irréversible. Em 21 gramas, o "trabalho" de juntar as peças fica todo a cargo de quem assiste (em Memento, havia uma ajudinha, com a repetição de uma sequência de cada trecho), como se participasse do trabalho de montagem do filme, intensificando seu envolvimento com a trama. E, a exemplo de Irréversible, ficamos sabendo antecipadamente o que irá se abater sobre os personagens, ao vislumbrar cenas entrecortadas do futuro de cada um. E, além desses, me remete a Pulp Fiction, pois cada cena deve ser bem observada, pois possui relevância que provavelmente só será entendida no final do filme, quando todas as peças estiverem na mesa.
O elenco é uma atração à parte. A atuação do trio que se encarrega dos personagens principais está simplesmente excepcional. Inegável a força da interpretação de todos eles. Watts, que eu já achava bastante talentosa desde Mulholland Drive, faz a transição da sua personagem de modo surpreendente. Sou fã incondicional de Del Toro, e ele não decepciona, consegue evitar que seu personagem desperte a antipatia do público. E Penn está tão bem quanto em Mystic River.
Não é um filme fácil de assistir. Tanto pela estória quanto pela estrutura narrativa. E talvez por causa disso, não seja unanimidade entre os que o assistem.
Eu recomendo.


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