"May I come in?"

coded by ctellier | tags: , | Posted On sábado, 15 de junho de 2013 at 09:02

meteorologia: solzinho e vento frio
pecado da gula: pizza amanhecida
teor alcoolico: nada ainda
audio: máquina do mempo fusion #004
video: the fall

Låt den rätte komma in (Let the Right One In) (2008) - Deixa ela entrar
roteiro: John Ajvide Lindqvist
direção: Tomas Alfredson
★ ★ ★ ★ ★

Let me in (2011) - Deixe-me entrar
roteiro: Matt Reeves, John Ajvide Lindqvist
direção: Matt Reeves
★ ★ ★ ★ ★

Antes de mais nada, gostaria de deixar claro que este post tem mais impressões de espectadora (e leitora) e menos observações técnicas sobre o filme.

Sei - e já afirmei isso em outros textos - que um filme baseado em livro deve bastar-se como obra e que, justamente por serem mídias diferentes, não se deve esperar que o filme seja ipsis literis o livro. É inevitável que ocorram perdas e que sejam feitas alterações na transcrição. Este post não é uma comparação livro versus filme, mas filme versus remake, analisando não qual deles é uma adaptacão mais fiel do livro e sim qual conseguiu manter a essência dele, o que a meu haver é o mais importante.

Fui assistir aos dois filmes motivada pelo término da leitura do livro (resenha aqui). Assisti à versão sueca, de 2008, depois ao remake norte-americano (lógico), de 2011. E, posso afirmar, apesar de serem bem semelhantes, o clima do livro está presente apenas no segundo.

O livro é um thriller de terror dos mais eficientes, daqueles de roer as unhas e se encolher na poltrona. Sua narrativa é brutal, crua, chocante até em alguns momentos. E, em várias cenas - por já saber da existência dos filmes - parava a leitura e ficava pensando: “Powtz! Vai ser legal demais ver esta cena no filme!”. Em muitos momentos, a leitura desperta sensações de asco, estranhamento e, lógico, susto. E, na versão sueca, não há praticamente nada disso. O filme não é ruim, mas é morno, lento, quase sonolento. Enquanto que o remake, ainda que tenha mais ou menos o mesmo ritmo, consegue ter cenas mais impactantes e criar muito mais tensão.

trecho do livro
“Virginia consegiu ficar de pé de novo, rodopiou e tentou se livrar daquilo que estava em suas costas.
Era algo que mastigava seu pescoço e sua gargata, e o sangue que jorrou foi lhe descendo por entre os seios. Ela berrou tentando arrancar o animal das costas, e continuou gritando enquanto caía de novo na neve.
Até que alguma coisa dura tocou a boca de Virginia. A mão de alguém.
Na bochecha, garras que se enterraram na carne macia... e que continuaram, até atingirem o osso da face.”
(p.238)

Apesar de em várias cenas, a versão sueca ser mais fiel ao livro, o remake aproveita as cenas para evidenciar alguma característica do personagem. Como quando Eli (Abby) ataca Virginia, por exemplo (acima). A violência do ataque e a força de Eli (Abby) segurando a vítima, detalhes bem evidenciados em outros pontos do livro, e que julgo essenciais para entender a essência do personagem, são atenuados na versão sueca. Sim, no livro, Lacke (Larry) afasta Eli (Abby) com apenas um chute. Mas o que não se sabe é o que ocorre antes disso (descrito em detalhes no livro) e que o remake utiliza para dar força à cena.

Não quer dizer que a estória não tenha elementos eternecedores e tocantes por sua sensibilidade. O relacionamento entre Oskar (Owen) e Eli (Abby) evoluiu calmamente e com sutileza ímpar. E isso está presente em ambos os filmes. Apesar de Chloë Grace Moretz conseguir dar a Abby um ar mais ingênuo e infantil que reflete com mais acuidade a psique da personagem, Lina Leandersson também constrói Eli de forma bastante adequada.

Não me incomodou em nada a supressão das estórias paralelas e de vários outros núcleos de personagens. Senti falta mesmo da trama envolvendo a transformação de Håkan (O Pai) em vampiro. Mas entendo que nem essa nem as demais caberiam no filme. Contudo, algumas cenas que foram deixadas na versão sueca parecem soltas, deslocadas do contexto, com pouca ou nenhuma razão de existir. No remake, mesmo com várias alterações que não chegam a modificar o rumo da trama - algumas aliás foram ótimas soluções na adaptação para a tela - não há cena desnecessária ou sem explicação. No original, há várias em que um personagem, do nada, resolve fazer algo (que está no livro) mas que no filme não faz sentido, já que não há nada que justifique aquela ação. Dá a impressão que os roteiristas do remake perceberão isso e suprimiram o que não era imprescindível. E, com ligeiras modificações, conseguiram amarram todas as pontas.

Enfim, os filmes são bons, bem produzidos, mas a versão original me decepcionou por não conseguir trazer para a tela a crueza do texto de Lindqvist, perdendo muito do seu impacto.



.

.

The angel’s share

coded by ctellier | tags: | Posted On quinta-feira, 13 de junho de 2013 at 10:03

meteorologia: cadê o verão?
pecado da gula: brigadeiro
teor alcoolico: nada ainda
audio: queen
video: band of brothers

(resenha publicada originalmente no Vórtex Cultural, em 06/06/2013)

The angel’s share (2012) - A parte dos anjos
roteiro: Paul Laverty
direção: Ken Loach
★ ★ ★ ★ ★

Robbie (Paul Brannigan), um jovem desempregado prestes a ser pai, é sentenciado a cumprir algumas horas de trabalho comunitário depois de espancar um rapaz na rua por um motivo banal. No grupo de infratores que cumprem pena ao mesmo tempo que Robbie, ele encontra outras pessoas com o mesmo problema dele - ter vivido sempre à margem da sociedade e ter dificuldade em arrumar emprego. Robbie encontra também, na figura do supervisor do serviço comunitário, um amigo e um mentor no conhecimento de algo até então ignorado por ele - a degustação e apreciação de uísque. E Robbie entrevê, nessa nova atividade, uma possibilidade de mudar de vida, de começar uma nova vida com a namorada, Leonie (Siobhan Reilly), e o filho recém-nascido.

Para os abstêmios ou não apreciadores de destilados, vale uma explicação sobre o título. A ‘parte dos anjos’ refere-se àquele percentual de uísque que evapora dos barris de carvalho durante o envelhecimento. Lógico, tem a ver com a bebida “descoberta” pelos personagens, porém tem mais a ver com algo que ocorre na segunda metade do filme, mas que me abstenho de contar para não tirar a graça da estória.

É um filme singelo que talvez fosse lembrado como apenas mais um filme escocês sobre as dificuldades do ingresso na vida adulta não fosse pela guinada no roteiro que ocorre a partir da segunda metade da trama. O filme deixa de ser uma estória dolorosa sobre problemas sociais e jovens infratores para se tornar uma aventura no melhor estilo ‘sessão da tarde’, em que ideias mirabolantes são postas em prática e conseguem ser bem-sucedidas a não ser por um percalço ou outro. Esse novo rumo surpreende o espectador e é nele que reside a leveza do filme, apesar de todo o non-sense das situações vividas pelos personagens. A mudança de tom e a nova abordagem da estória fazem toda a diferença no resultado final.

A trajetória de Robbie remete ao herói injustiçado que recebe um dom, que será responsável pela rendenção do personagem. Robbie consegue, usando sua aptidão recém descoberta, vislumbrar a possibilidade de sair da vida marginal e imersa em violência em que se encontrava até o momento. E, contrariando a máxima de que o ambiente molda o caráter, decide tomar as rédeas da sua vida nas próprias mãos. E, mesmo tomando um atalho a princípio - que leva o espectador a questionar se os fins justificam os meios-, livra-se do passado e dá um novo rumo à sua vida junto à sua nova família.

O filme não é longo, e assim consegue manter o ritmo do início ao fim, sem “barrigas”. Os diálogos ágeis e ácidos ganham o espectador principalmente nas cenas em que o grupo se inicia na degustação - que apreciador já não passou por isso? ser ridicularizado ao afirmar que um vinho, cerveja, uísque tem determinado aroma ou sabor - e durante a excursão a uma destilaria, em que o uso dos kilts causa consequências desagradáveis. O elenco central, praticamente desconhecido, tem boa empatia e convence como ‘gauches’ na vida que tentam de alguma forma dar certo.

É um filme despretensioso cujo sucesso reside na ambiguidade entre drama e comédia e que se torna bem sucedido justamente por não tentar misturar os dois gêneros e ainda assim conseguir manter o estilo do diretor e não deixar de lado a crítica social.



.

.