Bloomsday e o Everest

coded by ctellier | tags: | Posted On sábado, 23 de junho de 2012 at 13:25

meteorologia: friozinho incômodo
pecado da gula: pão na chapa com manteiga
teor alcoolico: nada ainda
audio: nerdcast #316
video: true blood

Sábado passado foi o Bloomsday, feriado comemorado em homenagem a “Ulisses”, de James Joyce, livro que conta um dia na vida do protagonista, Leopold Bloom, o dia 16 de junho de 1904. Alguns o consideram o único feriado literário do mundo, mas outros discordam (eu, inclusive), já que o Dia da Toalha também é derivado de uma obra literária. Apesar de o dia ter sido escolhido aleatoriamente, o motivo do feriado é divulgar, apreciar e homenagear a obra de Douglas Adams: “O guia do mochileiro das galáxias”. Mas é apenas um preciosismo, uma vez que provavelmente apenas a comunidade nerd/geek do mundo comemora o Dia da Toalha.

Voltando ao Bloomsday, admito que não havia reparado que aquele sábado era 16 de junho. Só liguei o dia ao evento ao ver pipocarem, no Twitter, comentários sobre o feriado no mundo. E só então me dei conta de que o evento (abaixo) a que pretendia comparecer na tarde de sábado fazia parte das comemorações.

16 de junho, às 16h: Aula aberta com Caetano Galindo
Caetano Galindo, tradutor da edição de Ulysses lançada pela Penguin-Companhia, dá aula aberta sobre o clássico de James Joyce.
Local: Loja Companhia das Letras por Livraria Cultura – Av. Paulista, 207

Deixem-me esclarecer meu interesse na aula. Reduzindo à essência, os motivos foram dois: o livro em si e a motivação do tradutor.

Para qualquer leitor de carteirinha - acho que até caberia nomeá-lo como Leitor, com L maiúsculo - "Ulisses" pode ser considerado como o Everest (ou o K2) da literatura. É um livro famoso que, segundo a crítica especializada e seus dedicados leitores, vale muito a pena ser lido. Não apenas pelo fato de ser uma obra-prima literária, mas pelo deleite proporcionado pela leitura. Bem, confesso que não faço parte dessa seleta confraria que já se deleitou com a leitura. Tentei. Duas vezes. Não consegui passar da página 60 ou 70. Admito, é frustrante, pois costumo ser uma leitora bastante persistente. Mas não consegui avançar. Felizmente, descobri a razão do meu insucesso. Há respaldo para ele no próprio livro, conforme Galindo habilmente nos explicou.

Aproveitando, falo do segundo motivo. Acompanho o blog da Cia.das Letras e, através dele, fiquei sabendo que seria lançada mais uma tradução da obra de Joyce. Eu era uma, até então, feliz proprietária da tradução da Dra.Bernardina Pinheiro, adquirida em 2006. Achei o fato interessante, mas nada além disso. Até ler, no mesmo blog, um texto de Caetano Galindo, o tradutor, contando sua motivação e sua experiência ao traduzir "Ulisses". E o enlevo foi imediato. Sua paixão pela obra e pelo ato da tradução transpareciam no texto tão intensamente que era impossível não notar. Um amigo escritor, ao ler, comentou que já havia visto aquela paixão em pessoas referindo-se à leitura, mas nunca à tradução de um livro. Terminei de ler seu relato pensando seriamente em adquirir essa nova tradução, mesmo já possuindo a anterior. Quando fiquei sabendo da aula aberta, imediatamente pensei: “Se ele falar com a mesma paixão que escreve sobre o livro, vai ser bom demais.” E assim foi.

Depois de alguns contratempos ao buscar o kit da corrida de domingo (relatados aqui), almocei rapidamente e me encaminhei à livraria, 15 minutos antes do início previsto. Descobri, ao chegar, que era necessária a retirada de senhas que, infelizmente, já estavam esgotadas. A vendedora da loja explicava, solícita, aos desavisados que chegavam, que se após 16:10 os portadores das senhas não comparecessem, os lugares restantes seriam liberados. Tudo indica que os habitués desses eventos na livraria já conheciam o procedimento, o que não era meu caso, nem dos demais que iam chegando. Pouco depois, segundo momento “vergonha alheia” do dia. Uma madame dos Jardins - eu sei, soa pejorativo, mas corresponde exatamente à atitude da senhora em questão - chegou um pouco antes das 16:00, sem senha, e insistia em subir, a despeito das explicações da vendedora. A madame começou a dar chilique sendo, inclusive, agressiva com a vendedora, como se esta tivesse algum culpa pelo fato de as notas distribuídas à imprensa não explicitarem a necessidade da senha, apesar da gratuidade do evento. Enfim, por volta de 16:10, o acesso foi liberados aos sem-senha. E a madame que tinha se alterado e quase feito um escândalo para entrar, simplesmente por não haverem assentos disponíveis, não ficou para participar da aula. Estressou à toa.

Feitas as apresentações, Galindo iniciou agradecendo nossa presença e comentando que, para qualquer um apaixonado por qualquer assunto, falar sobre ele é sempre um prazer incomensurável e que nós é que estávamos ali lhe fazendo um favor ao permitir que ele discorresse sobre "Ulisses". Pensei comigo: “Acertei em cheio. O que quer que ele resolva falar sobre o livro vai valer a pena ouvir.”

Não é minha intenção reproduzir aqui a aula, mas apenas comentar duas ou três coisas importantes que eu acredito mereçam ser compartilhadas. A principal é que, conforme Galindo fez questão de frisar, apesar do que se diz por aí, não é um livro inacessível. Certamente, não é um livro fácil. Apenas demanda um pouco mais de dedicação do leitor, cujo esforço será regiamente recompensado com o resultado da leitura.

Outra, como já mencionei anteriormente, foi o alívio proporcionado por Galindo quando, ao explicar o ritmo do livro, deu sentido ao fato de eu não ter conseguido ir além das primeiras 60 ou 70 páginas. Eu e muitos outros leitores. Resumidamente, Galindo explicou que Joyce acreditava que a técnica de escrita deveria responder ao tema. Sendo assim, já que o livro acompanha Bloom durante quase 24 horas, nada mais natural que o ritmo da narrativa refletisse o ritmo de um dia. E é isso que acontece. As primeiras horas do dia, ou seja, os primeiros episódios, assim como alguém que acaba de despertar, são sonolentas, modorrentas até. O ritmo vai melhorando à medida que a hora do almoço se aproxima. Enfim, se eu quiser usufruir da leitura, terei de ser ainda mais persistente que o habitual, tendo em mente que quanto mais próximo do meio-dia mais fluida será a leitura.

Ainda sobre a estrutura e o ritmo do livro. Para Joyce, a técnica deveria estar a serviço do tema, responder ao tema e, assim, expandir a experiência da leitura. A técnica narrativa utilizada deve decorrer do que é contado, acompanhando e complementando o conteúdo. E também, por essa razão, o livro vai ficando progressivamente mais esquisito. À noite, o sono e o cansaço - e, mais tarde, a embriaguez - acometem os personagens e, junto com eles, o texto. Por essa razão que, passado o horário do almoço, quando o leitor pensa que já “pegou o jeito” da leitura, a técnica narrativa vai se modificando, fazendo com que o leitor tenha de se readaptar a cada episódio. Para muitos leitores, isso deve ser uma chatice, mas os Leitores, assim como Galindo, acham uma diversão. No momento em que se descobre o fio condutor, o mote, o modus operandi do episódio, a leitura torna-se um divertido passatempo, uma charada resolvida que agracia o solucionador com aquela sensação de “quero mais”. Nesse momento da aula, um letreiro luminoso piscava na minha mente “Eu PRECISO ler este livro!”. Eu, viciada em leitura, mas também metida a escrevinhadora, fiquei simplesmente fascinada com a possibilidade de, na próxima vez que encarar "Ulisses", fazê-lo ciente disso e podendo desfrutar de tudo com mais amplitude, atenta a detalhes antes desconhecidos. Dá aquele comichão quase infantil de “caça ao tesouro”, ir colhendo pistas e recebendo recompensas no decorrer da leitura.

Enfim, a aula foi muito mais que isso, mas não me sinto capaz de reproduzir tudo. E, certamente, poucos estariam dispostos a continuar lendo. Reproduzo então a dica dada pelo próprio Galindo. Incapaz de falar mais sobre o livro, devido ao pouco tempo disponível, disse que se tivesse de dar uma ou duas dicas a quem se dispusesse a lê-lo seria: “Prestar atenção e fazer perguntas.” Disse para ler sem pressa, prestando atenção aos detalhes e perguntando seguidamente “Por quê?” Por que fulano disse aquilo? Por que sicrano estava aqui e não ali naquele momento? Por que beltrano fez aquilo? Por que esta frase foi escrita desse modo? Por que esta palavra foi usada?
Não tenho o hábito de ler desse modo, parando para elucubrar sobre o texto. Mas depois dessa aula, tenho certeza de que para ler "Ulisses" e perceber toda a riqueza contida nele, terei de fazer isso. Pois, confesso, senti inveja da paixão com que Galindo fala do livro. E quero obter essa paixão na leitura.



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Olha a fila!

coded by ctellier | tags: , | Posted On domingo, 17 de junho de 2012 at 20:13

meteorologia: ensolarado
pecado da gula: esfihas
teor alcoolico: 1 colorado caium
audio: cabulosocast #25
video: criminal minds

Corri hoje o percurso de 25km na XVIII Maratona Internacional de São Paulo. Mas o assunto deste post não é a prova. É sobre algo que já comentei aqui no blog quando participei do World Bike Tour 2011. A lei de Gerson, cuja premissa é levar vantagem em tudo.

Deixei para buscar o kit da prova ontem após o almoço. Eu sempre busco no sábado pela manhã, mas ia a um evento às 16:00 ali perto e quis “aproveitar a viagem”. Cheguei ao local de entrega e a fila estava quilométrica - literalmente. Apesar de longa, a fila até que andava bem e, 40 minutos depois estava saindo dali. Não, não tenho o que reclamar da organização. A fila devia-se à enorme quantidade de pessoas que deixou para pegar o kit no sábado à tarde - na maioria, corredores de fora de São Paulo que estavam chegando à cidade. E, chegada a sua vez, todo o processo era bem rápido e eficiente.

O post é sobre a “arte” de cortar filas e como se dar bem à custa da boa vontade alheia. Antes de mais nada, deixe-me explanar uma das muitas técnicas - ou seria melhor dizer “táticas” - disponíveis:
  1. Aproxime-se da fila como se estivesse procurando alguém, pedindo licença com extrema educação.
  2. Encontre uma pessoa, ou duas, com cara de trouxa (sei que a definição atualmente remete ao universo de Harry Potter, não consegui pensar num adjetivo mais específico, mas acredito que a maioria dos leitores entendeu o sentido).
  3. Comece a falar como se não se dirigisse a ninguém especificamente e espere o(s) trouxa(s) responder(em), mesmo que seja apenas com um aceno de cabeça.
  4. Conte uma estória que inspire a compaixão e a solidariedade do trouxa, frisando sua dificuldade em estar ali naquele momento.
  5. Neste passo, o trouxa já estará dando respostas verbais. Aproveite, então, para se aproximar ainda mais e simular uma intimidade que apenas o furador de fila e o trouxa sabem que não existe.
  6. Continue acompanhando a fila e conversando amenidades com o trouxa.
Pronto! Objetivo atingido!

Foi exatamente isso que presenciei ontem na fila para pegar o kit, quando estava quase entrando no local da distribuição.
No ginásio do Ibirapuera estava ocorrendo um outro evento, o “Disney on ice”. Um homem, de uns 30 e poucos anos, com três ingressos para o espetáculo em mãos, além do comprovante para a retirada do kit, veio pedindo licença até chegar à porta. Ali, perguntou a um casal, dois lugares à minha frente na fila, sobre o horário em que terminaria a entrega de kits (era às 16:00). Recebendo a resposta, que eu desconfio que ele já soubesse, começou a se lamuriar, dizendo que o espetáculo começava às 15:00 e não terminaria antes do encerramento da entrega. Lamentava ter gasto 180 reais por ingresso e ter de ficar ali na fila apenas por que os horários coincidiam. Enquanto isso a fila andava, e ele ia junto, puxando assunto com um rapaz, logo atrás daquele casal na fila. E assim foi. Em menos de 5 minutos, o homem se infiltrou na fila na maior cara-de-pau.

Admito, eu poderia ter reclamado, porém não estava a fim de me estressar. As pessoas à minha frente não repararam, ou fingiram que não repararam e também não falaram nada. Mas o que me deixou admirada foi a fleuma do indivíduo. Agia como se tivesse o direito de fazer aquilo, já que precisava estar no espetáculo cujos ingressos segurava e fazia questão de exibir. São pessoas assim que deturpam o sentido do “jeitinho brasileiro”. O nosso jeitinho tem de ser reconhecido pela nossa habilidade em encontrar soluções para problemas aparentemente insolúveis e contornar situações com criatividade aliada a tenacidade. É lógico que cada um acha que seu problema é mais importante que o dos demais, isso é intrinsecamente humano. A falha de caráter está em pensar que isso é motivo suficiente para levar vantagem sobre outrém sempre que a oportunidade se apresentar (ou for criada propositalmente). Que exemplo um homem assim dá para os filhos?

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