Moleskine » Cap.2 - Perseguindo tempestades cerebrais

coded by ctellier | tags: , | Posted On quinta-feira, 8 de dezembro de 2011 at 07:18

meteorologia: amanhecer nublado
pecado da gula: pão na chapa com manteira
teor alcoolico: nada ainda
audio: riverdance
video: karate kid

Já que hoje tem palestra do autor de "Muito além do nosso eu", na Livraria Cultura, é a ocasião perfeita para publicar mais um post sobre o livro.


Todo o capítulo gira em torno do embate entre localizacionistas e distribucionistas. Mas o título explicitamente já conduz o leitor na direção do processamento distribuído. O que não é de se estranhar, já que o autor no capítulo anterior frisou a intenção final do livro: mostrar ao leitor que o essencial são as “populações de neurônios.”

O primeiro confronto relatado é em uma palestra, a primeira de muitas, ministrada em Oxford por Lorde Edgar Douglas Adrian, em 1946. O assunto: a discussão sobre a provável sede da inteligência. Lorde Adrian discorre que, assim como em diversos outros assuntos, no final do século XVII, os filósofos de Cambridge e Oxford tinham opiniões opostas sobre o assunto. Enquanto em Cambridge defendia-se que a inteligência ficava localizada numa parte do corpo, em Oxford defendiam a proposição mais improvável (na época) de que ficava espalhada por todo ele.

Lorde Adrian, que dividiu o prêmio Novel de Fisiologia e Medicina em 1932, sendo de Oxford, claramente pendia para o lado defendido pela sua universidade. E, ele foi, nas palavras de Nicolelis:
“(...) o primeiro neurofisiologista a medir com exatidão como informações sensoriais sobre o mundo externo e o corpo são codificadas em salvas de eletricidade, a linguagem da mente, para então serem transportadas por nervos periféricos para todo o cérebro.” Ponto para os distribucionistas.

Logo adiante, o autor cita mais dois embates: Galvani versus Volta e Newton versus Einstein. Sobre o primeiro escreve: “A disputa entre Galvani e Volta, repetida muitas vezes na história da ciência, ilustra o fato de que a natureza, aparentemente, não escreve seus concertos com apenas um punhado de notas triviais.” Assim como já observado, e que se repetirá ainda muitas vezes no decorrer do livro, Nicolelis mais uma vez nos remete a uma metáfora musical para exemplificar o teor da discussão.

Acerca do segundo, em que o “formato” da luz é a questão central – partícula versus onda - somos apresentados a Thomas Young. Digo apresentados pois, apesar de conhecer o trabalho desse homem da ciência, não me recordava de ter algum dia sabido seu nome. Médico, físico, egiptólogo, fisiologista, linguista e, conforme Nicolelis, o “primeiro neurocientista computacional da história”. Numa época em que o termo multi-tarefa sequer existia, ele certamente encaixava-se nessa categoria. E o nome da biografia escrita por Andrew Robinson não deixa dúvidas sobre isso: “The Last Man Who Knew Everything: Thomas Young, the Anonymous Polymath Who Proved Newton Wrong, Explained How We See, Cured the Sick and Deciphered the Rosetta Stone” (“O último homem que sabia tudo: Thomas Young, o anônimo polímata que provou que Newton estava errado, explicou como nós enxergamos, curou os doentes e decifrou a Pedra Roseta, entre outras proezas geniais”).

Eu já tinha conhecimento do experimento da dupla ranhura (double-slit experiment), mas admito que não fazia a menor ideia de quem o tinha concebido. Mais admirável ainda, foi saber que Young, um ano após a realização do experimento que desmentiu Newton, começou a formular o que viria a ser a teoria distribuída de codificação neural – que eu conhecia como teoria tricromática da visão colorida. O que nos leva a mais uma disputa: Thomas Young versus Franz Gall. Segundo Roberto Erickson, colega de Nicolelis na Duke e um dos poucos capazes de falar sobre a origem da richa: todo localizacionsta tem Gall por ancestral, enquanto todo distribucionista é herdeiro de Young.

Mas, independente do confronto de ideias, o mais incrível foi aprender que, sem nenhuma outra fonte de dados além do próprio raciocínio, Young previu a existência de 3 tipos distintos de receptores de cores na retina. Nada além dos seus próprios neurônios, nenhum equipamento, nenhuma outra pesquisa. Apenas sua lógica dedutiva. Hoje, num mundo em que praticamente qualquer experimento, dedução ou comprovação de uma teoria não é factível sem a utilização de computadores e/ou calculadoras superpotentes, tal feito é simplesmente inimaginável.

E dois séculos depois foi provado que os neurônios, ou melhor, o sistema neuronal descrito por Young – neurônios de banda larga – são o padrão e não a exceção. Mais uma disputa “vencida” pelos distribucionistas.

“Curiosamente, sem ter acesso a qualquer um dos instrumentos computacionais e outros artefatos de alta tecnologia que abundam nos modernos laboratórios de neurofisiologia, Thomas Young, munido apenas de papel, tinta, uma pena e muitas velas para iluminar seus devaneios notívagos, foi capaz de deduzir intuitivamente uma das mais fundamentais leis da ciência da mente. Apenas pelo pensamento.”

Imediatamente ao terminar de ler o parágrafo acima, veio-me à mente algo que sempre assombra meus pensamentos: ao delegarmos a essas “máquinas” o processamento de nossas ideias, estamos utilizando nossos neurônios na mesma proporção para aprender e apreender coisas novas e diferentes, ou simplesmente permitindo que eles fiquem cada vez mais preguiçosos? Pergunto-me repetidamente se nossos antepassados “pensavam” mais e melhor que nós hoje.

E o autor, finaliza a lista de confrontos, falando sobre Camillo Golgi e Santiago Ramón y Cajal. Como Nicolelis o descreve:
“Microscopista quase mágico, Ramón y Cajal combinava uma habilidade laboratorial até então inigualável com um dom artístico apurado para o desenho e uma criatividade para a abstração pouco comum entre seus pares.”
Como já havia comentado, foi de Cajal o primeiro desenho (fiel) de um neurônio que vi num livro de neuroanatomia na faculdade. E a técnica utilizada para Cajal visualizar e, posteriormente, desenhar os neurônios levava-o a inferir que cada célula era uma unidade de processamento. Enquanto isso Golgi remava contra a maré, propondo que “a fusão de axônios era responsável pela gênese do que ele chamou de redes de nervos”.

E, numa ironia do destino (para quem acredita que ele existe), ambos dividiram o Nobel de Fisiologia e Medicina em 1906. Com um discurso inspirado e inflamado, Cajal envolveu os presentes e, aparentemente, saiu vencedor do confronto. Mais dois séculos e a grande maioria dos neurocientistas (termo cunhado justamente nessa premiação de 1906) acredita que Golgi estivesse certo em sua visão mais abrangente. E silenciosamente, a rede neural mais uma vez venceu a disputa.


Referências:
Biografia de Thomas Young, na Livraria Cultura
Descoberta da bioeletricidade: Galvani x Volta
Experimento dupla ranhura: vídeo e texto
Teoria tricromática

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